08 setembro, 2006



O potencial explicativo da realidade barrosã – a de ontem e a de hoje -- de o livro «O silêncio das carpideiras», de Miguel Miranda, implica um recurso à imaginação, o seu texto remete-nos para uma realidade mais vasta que aquela a que se cinge à trama da estória. De facto, a composição cénica e o carrear de actores para esta ‘estória’ colocam a sua chave explicativa no domínio da ‘metáfora’ enquanto entidade formal capaz de desvelar uma realidade outra que a crueza denotativa da palavra revelaria ora falaz ou cruel, ora simples demais para ser compreendida ou credível.

Uma consideração realística ou uma interpretação linear não colhe pele definição típica dos personagens compostos por tudo quanto de negativamente relevante se constata existir em tanta gente de Barroso (como, aliás, em tanta gente por esse mundo fora). Não parece, também, credível a divisão social do trabalho que delimita e contorna de modo minimalista e artificial cada personagem e que se ensaia na definição do contexto do romance; como incongruente é a referência naturalista que dificilmente poderia desempenhar com propriedade o papel que lhe é dado na estória. Outras figuras se adaptariam melhor para a descrição típica das gentes de Barroso na altura dos empreendimentos do Alto Regavão: a luta áspera e implacável pela sobrevivência de tantos estava materializada para lá da simplicidade da cavadora alcoólica; do mineiro, do moleiro, do lenhador ou do capador, angelicalmente abusados pela bruxa. Ou complicada por outros poderes que não a vetustez pura e simples da idade do ferreiro…

Por isso, pensamos, não se deve ler o livro como uma 'estória', mas como uma metáfora que nos remeta para a realidade cataclísmica da submersão do Barroso tardo-medieval pelo peso insustentável da modernidade capada e manca que lhes saiu, na altura, em sorte!

A morte voluntária dos habitantes da aldeia, acto inverosímil em si mesmo, remete-nos para o facto de ter perecido infrutífera nesse «acto» de submersão (que não de subversão) a estrutura ‘rural’ que era ainda, embora noutras formas, e vantagens também, no restante país, o suporte do ’portugal dos pequeninos’ de Salazar e que nada mais sobreveio na bonança que aquela que, à deriva num resquício de colmo, revelou com a sua sobrevivência o sem-sentido da sua persistência sem dignidade noutro tempo e noutro lugar. É particularmente relevante essa imagem pedida de empréstimo de uma «Arca de Noé», contendo um corpo de criança e que há de ser mulher, mas a quem, faltando em tal nau o par masculino, lhe faltavam, também, todas as hipóteses de continuação…. Dizem que lhes restou a perdição (sentença tão ouvida em Barroso!). Trata-se pois da 'estória' de alguém que arrancada do seu espaço e do seu 'tempo' fracassa ante o poder de quem – por inépcia ou ignorância crassa – não compreendia uma realidade suportada numa ética comunitária sem alternativa. Da estória, em pinceladas vigorosas mas esquemáticas, quiçá esqueléticas, fica a sugestão de uma relação de poderes raramente perpassada por qualquer eito de racionalidade e a ‘denúncia’ do travejamento social e mental da realidade barrosã imbricada no domínio das forças brutas indomáveis do poder político executado por esconsos ‘encarregados-gerais’, no insondável sobrenatural ou na quadratura mental e asséptica da ciência.

E o que resta: a desolação pura e a memória apenas de uma cultura despegada do tempo e que sucumbiu às águas da barragem. E a certeza, avara certamente, de que com Barroso hão feito todas as contas, de que estão todos quites. (Pois! …)

E nada mais restou? A metáfora do livro não sobrevive sem a experiência do seu sentido no momento actual, daquilo que persiste ou resiste dessa brusca irrupção de modernidade. Temos, de um lado, um conjunto de posições e valores até ao tempo desconhecidos e os quais haviam desconcertado a frágil e ‘assarapantada’ figura de Jolo e, por outro lado, o elemento conservador que, lido o texto, parece sobreviver à «morte» da aldeia barrosâ. É essa tensão entre o elemento de 'instabilidade' e o de uma cultura de Barroso suportada por uma ética comunitária piramidal estruturada em torno de laços de vassalagem ou, tão só, em torno do medo puro e simples que o autor nos lega para que à sua luz se leia cada acto e cada momento do presente.

Parece-nos, contudo, resistir uma ideia que envolve todo o texto, a «certeza» da impossibilidade de Barroso garantir a sua identidade e autonomia para lá das implicações estruturais introduzidas pela construção da barragem. De facto, de todos aqueles que de algum modo contactaram a multidão de «estranhos» envolvidos no empreendimento, para além de Susana, sua mãe, Mariana, regressa apressada à aldeia para o retorno às suas lides e rítmos de outrora, guardando na consciência a gratidão devida aos seus patrões. E um Jolo que viveu a História sem se dar conta e restou acabrunhado ante a consciência remordente de actos de cobardia e traição. Nenhum sentimento positivo, operativo; nenhuma vitória pessoal ou comunitária ... E promessas ...

«Susana era miúda de aldeia, ingénua por definição. Mas não a esse ponto. Aguentou-lhe o olhar até ele desviar e disse:
-- Voltas quando?
Marcel não conseguiu encará-la de novo. Com os olhos baixos murmurou:
-- Um dia. Prometo.»



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