Chaves, 24 de Setembro de 1971.
Gosto destas cidades pequenas, frutos urbanos em que a polpa deixa ver ainda o caroço à volta do qual se desenvolveu: a praça do Município, enquadrada pelo castelo, a igreja matriz, a casa da Câmara e a Misericórdia, com o pelourinho no meio a garantir a justiça. Superam gregariamente - na sua disciplina alinhada e varrida -- a anarquia e a promiscuidade do aglomerado aldeão, conferem liberdade e dignidade ao habitante, que, além disso, pode continuar nelas a respirar o oxigénio puro do campo, a ver a paisagem e a saudar a alvorada com um assobio salutar, como o que me acorda todas as manhãs desde que aqui venho.
Alturas de Barroso, 21 de Setembro de 1969
A paz destes barrosões, sentados no ombro de uma lameira a guardar a junta de bois! Parecem sonâmbulos a apascentar a eternidade.
Montalegre, 11 de Janeiro de 1970
Avisado por um amigo de que havia hoje cá na terra uma chega de toiros, meti-me a caminho debaixo dum temporal desfeito, e teimei com a chuva, o vento e o granizo que consegui chegar a horas de assistir ao combate. E valeu a pena. Se há em Portugal meia dúzia de espectáculos que merecem ser vistos, este é um deles. Primeiro, as bichezas, depois de nove voltas propiciatórias à capela do orago e da sanção da bruxa, a sair dos respectivos lugarejos, rodeados pela juventude dos dois sexos, enquanto o sino toca a Senhor fora e o mulherio idoso reza implorativamente aos pés do Santíssimo; a seguir, a chegada dos cortejos ao Toural da vila, as cerimónias preliminares do encontro -- vistoria rigorosa dos animais (não tragam eles pontas de aço incrustadas nos galhos), a escolha do piso, etc. finalmente, a turra -- os dois bisontes enganchados, cada qual a dar o que pode, no esforço hercúleo de não perder um palmo de terreno, ou ganhá-lo, apenas cedido. Turra que dura eternidades de emoção e só termina quando uma das bisarmas fraqueja, recua, e acaba por fugir.
Não e, contudo, a luta gigantesca, apesar de empolgante, o que mais diz ao espectador forasteiro. É o halo humano que a envolve, os milénios de ancestralidade que ela faz vir à tona da assistência. Símbolo da virilidade e fecundidade, o boi é na região o alfa e o omega do quotidiano. Cada povoação revê-se nele como num deus. Vitorioso, cobrem-no de flores; derrotado, abatem-no impiedosamente. Quando há minutos a turra acabou, depois de viver numa tensão de que a palidez de um padre a meu lado era a síntese, toda a falange que torcia pelo vencido parecia capada.
Boticas, 17 de Setembro de 1970
Um lauto e demorado jantar, a que assisti de talher praticamente cruzado, num enjoo renitente do estômago e do cérebro. Quanto mais a fome crónica de Portugal se farta, mais repugnância sinto pelos guisados. É que, sem almejar finuras de espírito ou Banquetes de Platão ou Kierkegaard às mesas lusitanas, também me não resigno a que saiam sempre delas, ou raciocínios que parecem eructações, ou Ceias dos Cardeais.
[eructação = arroto]
Gosto destas cidades pequenas, frutos urbanos em que a polpa deixa ver ainda o caroço à volta do qual se desenvolveu: a praça do Município, enquadrada pelo castelo, a igreja matriz, a casa da Câmara e a Misericórdia, com o pelourinho no meio a garantir a justiça. Superam gregariamente - na sua disciplina alinhada e varrida -- a anarquia e a promiscuidade do aglomerado aldeão, conferem liberdade e dignidade ao habitante, que, além disso, pode continuar nelas a respirar o oxigénio puro do campo, a ver a paisagem e a saudar a alvorada com um assobio salutar, como o que me acorda todas as manhãs desde que aqui venho.
Alturas de Barroso, 21 de Setembro de 1969
A paz destes barrosões, sentados no ombro de uma lameira a guardar a junta de bois! Parecem sonâmbulos a apascentar a eternidade.
Montalegre, 11 de Janeiro de 1970
Avisado por um amigo de que havia hoje cá na terra uma chega de toiros, meti-me a caminho debaixo dum temporal desfeito, e teimei com a chuva, o vento e o granizo que consegui chegar a horas de assistir ao combate. E valeu a pena. Se há em Portugal meia dúzia de espectáculos que merecem ser vistos, este é um deles. Primeiro, as bichezas, depois de nove voltas propiciatórias à capela do orago e da sanção da bruxa, a sair dos respectivos lugarejos, rodeados pela juventude dos dois sexos, enquanto o sino toca a Senhor fora e o mulherio idoso reza implorativamente aos pés do Santíssimo; a seguir, a chegada dos cortejos ao Toural da vila, as cerimónias preliminares do encontro -- vistoria rigorosa dos animais (não tragam eles pontas de aço incrustadas nos galhos), a escolha do piso, etc. finalmente, a turra -- os dois bisontes enganchados, cada qual a dar o que pode, no esforço hercúleo de não perder um palmo de terreno, ou ganhá-lo, apenas cedido. Turra que dura eternidades de emoção e só termina quando uma das bisarmas fraqueja, recua, e acaba por fugir.
Não e, contudo, a luta gigantesca, apesar de empolgante, o que mais diz ao espectador forasteiro. É o halo humano que a envolve, os milénios de ancestralidade que ela faz vir à tona da assistência. Símbolo da virilidade e fecundidade, o boi é na região o alfa e o omega do quotidiano. Cada povoação revê-se nele como num deus. Vitorioso, cobrem-no de flores; derrotado, abatem-no impiedosamente. Quando há minutos a turra acabou, depois de viver numa tensão de que a palidez de um padre a meu lado era a síntese, toda a falange que torcia pelo vencido parecia capada.
Boticas, 17 de Setembro de 1970
Um lauto e demorado jantar, a que assisti de talher praticamente cruzado, num enjoo renitente do estômago e do cérebro. Quanto mais a fome crónica de Portugal se farta, mais repugnância sinto pelos guisados. É que, sem almejar finuras de espírito ou Banquetes de Platão ou Kierkegaard às mesas lusitanas, também me não resigno a que saiam sempre delas, ou raciocínios que parecem eructações, ou Ceias dos Cardeais.
[eructação = arroto]
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