“Conversão mística” parece ser a qualidade que Calvão
(2105), em Notas sobre o Barroso dos
Séculos X-XIV, propõe que o leitor invoque para justificar a adesão à sua tese
sobre a origem do nome Barroso.
Pondo de parte o risco de uma exagerada simplificação, há no
texto de Calvão um esforço apoiado em suporte documental que é convocado para
sustentar a tese de que o nome dado e este espaço geográfico advém do de um seu
terratenente que, em tempo idos e
absolutamente imemoriais, recebera de alguém as terras que passaram, desde esse
tempo, a ser designados pelo seu nome. Relevante é o facto de que essa tese é
assumidamente orientada contra a tese de Baptista que, com grau igual de simplificação
nossa, defende que a “hipotética origem” do nome de Barroso resulta da confluência
das ideias sobre o assunto de um conjunto de autoridades, a que recorre no seu
texto, com outras coletas pessoais de cunho antropológico e etnológico (Baptista, n.d.: 18-23).
Antes de passar a uma avaliação crítica da tese de Calvão,
uma declaração de interesse: não defendemos nem uma tese nem outra, não negamos
a verdade de uma tese ou de outra. Preocupamo-nos apenas em indagar da
razoabilidade da tese de Calvão, esforço que resulta apenas da publicação da
sua obra acima referida.
Ciente da razão que lhe assiste e crente na
indestrutibilidade do conteúdo ínsito no documento de que parte (Rojas, 1658), Calvão descuida a sua
argumentação, desconhecendo a necessidade de plantar na mente de quem o lê essa
abertura para a verdade, na procura da qual, reconheçamos, investiu o seu
tempo. Deixemos para outra oportunidade a discussão substantiva sobre o que diz
sobre origem do nome e prestemos atenção a dois aspetos que cavam fundo na
consistência e na credibilidade lógica da sua tese.
Defende Calvão que o nome é antiquíssimo, original de uma
família goda de Toledo,
desprezando com isso o manancial de informação que Baptista fornece para a sustentação
da sua tese. Naturalmente que quem quer que seja é livre de recusar uma
qualquer tese, mas não é aceitável que quem destaque as suas qualidade de
investigador recuse uma tese tendo como único recurso um argumento de
autoridade. Em si, a autoridade não é um mau recurso argumentativo, desde que, e deixando de lado a qualidade da autoridade, sobre
esse assunto não haja outras autoridades com pensamento divergente. Castro Henriques
acha que é absurdo “Barroso” significar terras de barro porque tal é
demonstrado por um “olhar desarmado sobre uma carta geológica do Norte de
Portugal” (Calvão, 2015: 21). Tal dito parece-nos
insignificante para que, recorrendo a ele e de uma penada, banir o complexo e plural conjunto de informações
que Baptista apresenta e que apontam num sentido contrário.
O segundo erro de Calvão tem a ver com a sua estratégia. Ao
recusar a tese apresentada por Baptista na justificação do vocábulo “Barroso”,
negando a possibilidade de tal nome emergir pragamaticamente,
Calvão confessa, página 53: “Não sabemos quem foi o primeiro nobre a quem foi conferido o título
de tenente da Terra de Barroso. Ignoramos ainda a data em que tal
doação terá ocorrido, embora os factos descritos apontem no mesmo sentido: a
concessão desta região alto-transmontana a um Barroso ou Gudiel de Toledo” (Calvão, 2015 destaques
nossos).
Deixando nós a disjuntiva ou para
outra altura, Calvão recusa um conjunto vasto de elementos capazes de trazer
alguma informação a partir do qual se pode construir algum conhecimento sobre o
objeto que o apoquenta, mas no gesto fundador da sua tese coloca a “não-sabedoria”
e a “ignorância”. Ora, da ignorância só se pode inferir a ignorância, e melhor
avisado seria o silêncio sobre um assunto sobre o qual se sabe apenas o que se
ignora.
Mais ainda: a sua
estratégia vai mais longe. Convoca não só em defesa da sua tese aquilo que
confessadamente não sabe como descuida uma investigação sobre aquilo que
poderia, no termo da pesquisa, validar a sua hipótese. Na falta de qualquer
documento coevo sobre o qual possa justificar a cadeia de inferências que o
levam à justificação do nome “Barroso”, poderia, como é de bom-tom em quem
exibe pergaminhos de investigador, cuidar de saber que outros elementos
poderiam vir em apoio da sua tese. Falamos de um conjunto de elementos, por
exemplo, de matriz arqueológica ou sociológica que dessem força à existência de
um senhorio qualquer, produto de uma honraria, senhor esse de cujo nome advém o
nome de Barroso. Poderia dizer, por exemplo, “não sabemos”, “ignoramos”, mas, acrescentaria,
há este e este indício que aponta para, que nos faz crer que… e que torna
razoável para todos a aceitação da tese que propomos.
Da falha anterior resulta a colocação de uma objeção à sua
tese, esta de natureza mais estrutural, relativa a uma certa “naturalização” do
senhorio em terras que se haveria depois designar “de Barroso”. Trata-se de um
assunto que julgamos pertinente e que terá/teria que ser propedêutico a qualquer
investigação que visa “construir” um determinado objeto de conhecimento que tem
como pressuposto um determinado modelo de organização política. Não se dê o
caso de a estrutura com que se diz terem horado alguém não tenha possibilidade de ter
existido num certo tempo e num certo contexto, e lá se esvai a hipótese por
manifesta impossibilidade ôntica!
Não basta passar os documentos ao Raio X, mas importa sobremaneira
perceber as exigências do pluralismo metodológico que suporta as investigações
em ciências humanas. Um investigador tem de ter, ao mesmo tempo, a técnica e a
manha de um caçador e a persistência a e tenacidade de um arqueólogo. A
capacidade de perceber aquilo que a nossa mente assume como real tem a ver
com aquilo que é e está relacionada com um casamento difícil ou impossível entre
a epistemologia e a ontologia, o que exige a todos uma postura de sobreaviso
sobre o processo do assentimento dado a qualquer proposição, dado que esse
casamento pode, o mais das vezes, não passar de interesseiro concubinato. Crítica
à qual todo o texto de Calvão se sujeita, porquanto nele perpassa uma determinada
marca ideológica enviesante que se expressa, por exemplo, de forma clara, na
adesão ao “equívoco historiográfico” (Mattoso, 1993) da há muito ultrapassada interpretação
conservadora da “reconquista” visigótica da península.
Por coerência, não recusamos a possibilidade de verdade da tese
de Calvão, apenas nos parece que ela não passa incólume à “navalha de Occam”. Ao convocar desnecessariamente uma
multiplicidade de elementos, induz no processo de legitimação da origem de um
nome uma pluralidade de razões que não rebate a razoabilidade de teses mais
simples. A polémica que Calvão alimenta para a alteração do padrão convencional
sobre a origem do topónimo Barroso coloca como solução para a adesão à sua tese uma espécie
de “conversão mística” a operar pelo auditório, contra todas as exigências do convencimento
racional ainda que no grau do meramente plausível ou
razoável. Enquadrando-se, na nossa opinião, a sua tese numa eponomia, nessa conjetura sobre a origem do nome “Barroso” são ainda maiores
as exigências da quantidade e da qualidade dos elementos factíveis ou empíricos
nela constantes. Condição que o seu texto não cumpre.
Baptista, J. D. (n.d.). Toponímia de Barroso. Ecomuseu
- Associação de Barroso.
Calvão, F. (2015). Notas sobre barroso dos Séculos X-XIV - cartas
abertas. Editora Cidade Berço.
Mattoso, J. (1993). Portugal no Reino Asturiano-Leonês. In História de
Portugal. Antes de Portugal (Vol. I). Editorial Estampa.
Rojas, P. (1658). Historia de la imperial, nobilissima, inclyta, y
esclarecida ciudad de Toledo ... Madrid. Retrieved from
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